25 março 2005

A CO-INCINERAÇÃO E O ESTADO DE DIREITO DEMOCRÁTICO

No Programa que o Governo acabou de apresentar à Assembleia da República pode ler-se- Capítulo III, ponto 2, pág. 93- : No que se refere aos resíduos industriais perigosos, o Governo « retomará o processo tendo em vista a co-incineração nas cimenteiras » .
Esta mesma expressão já constava ipsis verbis do manifesto eleitoral do PS que foi sufragado nas últimas eleições .
Vem sendo questionado publicamente se não deverá considerar-se legitimada a co-incineração face aos resultados eleitorais de 20 de Fevereiro .
No seu bem estruturado artigo de opinião publicado em 11.03.2005 num jornal de Coimbra, Júlio dos Santos, considerou legitimada a co-incineração a partir dos últimos resultados eleitorais.
Demonstrando consciência da gravidade do problema, o autor revela-se contudo resignado e disposto a aceitar a co-incineração ao afirmar , a dado passo do seu artigo : « o povo assim o quis, pois que assim seja » .
É louvável o sentido democrático que compartilho .
A República Portuguesa é, efectivamente, um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, conforme dispõe o artigo 2º da nossa Constituição .
Assim, como democratas, devemos respeitar a vontade livremente expressa pelo Povo português.
Contudo a vontade expressa pela maioria tem de subordinar-se à lei num Estado que não é só « democrático » , mas também « de direito » .
Se a maioria dos portugueses decidisse que nos devíamos atirar todos a um poço , não ficaríamos seguramente obrigados a fazê-lo .
O facto de a maioria dos portugueses ter votado no PS nas últimas eleições não significa que tenhamos que aceitar a condenação a vivermos, no futuro, no meio de quatro paredes impregnadas de lixo tóxico industrial, porque construídas com cimento resultante da co-incineração .
Se da co-incineração resulta ainda e principalmente a produção de substâncias altamente cancerígenas, cujo efeito subsiste durante mais de 30 anos ( dioxinas, furanos, etc ), nunca a adopção de tal método de queima de resíduos industriais perigosos pode estar legitimado, porque viola direitos que a mesma Constituição consagra .
Abstraindo por ora da relevância criminal que poderá assumir a prática de actos de co-incineração, atento o disposto nos art.s 144º, 146º , 278º, 279º e 280º do Código Penal, importa esclarecer que os artigos 24º e 25º da Constituição da República Portuguesa consagram a inviolabilidade do direito à vida e à integridade moral e física das pessoas, determinando o artigo 66º nr. 1. que « Todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender » .
Deste último preceito legal resulta não apenas um direito, mas também um dever que impende sobre todos os cidadãos portugueses ( e não apenas sobre os que vivem perto das cimenteiras ) que é o de defender « um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado » .
Ser ecologista ( como agora se diz ) não é pois, em Portugal, uma mera questão de moda , sendo sim um imperativo constitucional .
Quando promovi uma acção popular contra a co-incineração, através da interposição de um recurso contencioso de anulação no Supremo Tribunal Administrativo que visava a anulação do despacho do Ministro José Sócrates, achei que seria suficiente, como foi de facto, a via dos tribunais administrativos para alcançar o objectivo de impedir esse grave atentado à saúde pública .
Em 21 de Janeiro de 2004 o Supremo Tribunal Administrativo julgou revogado o despacho do Ministro José Sócrates que determinou a opção pela co-incineração em Souselas e Outão .
A Convenção de Estocolmo assinada pelo Estado Português em Maio de 2001, através do Secretário de Estado do Ambiente do então Ministro Sócrates, consagra no seu artigo 5º diversas medidas para reduzir ou eliminar as libertações derivadas da produção não intencional " de Poluentes Orgânicos Persistentes, referindo o respectivo Anexo C que as dioxinas e furanos se libertam " de forma não intencional a partir de processos térmicos, que compreendem matéria orgânica e cloro , como resultado de uma combustão incompleta ou de reacções químicas " , entre os quais ( processos térmicos ) se inclui a co-incineração de resíduos industriais perigosos em cimenteiras ( alínea b) da Parte II ) .
É tempo pois de se deixar de brincar com coisas sérias .


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